Há um
semissilêncio, o barulho dos automóveis ainda discreto e o bocejar do mar mais
ao fundo quase imperceptível, pela janela que abafa o ambiente. As cortinas de
renda peneiram o Sol, que desponta por entre algumas nuvens, os primeiros
raios, mesmo mornos, marejam luz e sombras por cima da escrivaninha logo
posicionada, iluminam: boletos; recibos; extratos; bilhetes ou cartas; o
cinzeiro transbordado; um diário, talvez uma agenda. O mogno, possivelmente de
alguma reversa indígena, reveste todo o cômodo, estantes ainda organizadas e
preservando segredos, a biblioteca imersa na breve bonança dos tempestuosos
dias que se seguiam. Uma manhã comum, talvez, por algum canto do mundo.
A calma
quebrada em ascensão. Ouve-se: passos trôpegos, o ranger de chaves, vidraçaria
estilhaçando, um respirar pesado, um corpo faz as paredes ressoarem. O relógio
acima da porta indica 6:50, sente-se a aproximação. Estrondo. A porta abre
violentamente, pobre infeliz, apoiou-lhe todo o peso pelo ombro enquanto a
abria, foi ao chão. Respira com uma tremenda dificuldade, assim como um peixe
que estranha a atmosfera. Carregava uma garrafa de uísque 12, que se resume
apenas ao gargalo agora. Chorando o álcool derramado enquanto o lambe na
textura da madeira, numa tentativa desesperada de beber a fuga desastradamente
posta, sequer repara que sangra.
A biblioteca
era refúgio desde menino, quando seu pai, professor universitário e jornalista,
lhe ensinara a paixão pela leitura e a escrita. O pai a alimentou por anos com
livros, uma particular coleção de primeiras edições, os clássicos desde
Cervantes a Hemingway, passando por Machado, também uma família de dicionários
e artigos científicos nas estantes, nas paredes reportagens premiadas e fotos
nostálgicas em preto em branco. Porto pra ambos, e só a eles o acesso
irrestrito, às vezes passavam ali fins de semanas inteiros, organizando papeis,
desempoeirando os livros, espalhando naftalina para as traças, liam entre si
mais uma vez algum clássico ou uma nova aquisição e seus diários secretos. Sua
mãe não os questionava e a empregada, uma mãe extra deles, fazia um ou outro
comentário despretensioso, elas, as mulheres da casa, debochavam da mística encarnada
no lugar. Mas nenhum terceiro entrava no
cômodo sem convite. O apartamento ficara de presente de casamento para o menino
já homem, já que, seus pais se mudaram para um condomínio residencial, e sua
jovem esposa aprendeu a respeitar seu outro casamento com a biblioteca.
Apesar
de ele estar ao choro, aos soluços e aos engasgos, a rotina do apartamento não
era essa, o despertar era mais agradável, vinha de um “bom dia” sussurrado e
preguiçoso acompanhado de um beijo tênue próximo aos olhos. Tinham pouco mais
de um ano de casados, a lua de mel parecia se estender, similar a um desses
casais de classe média alta de comercial. A esposa, sempre de pé antes do
marido e da própria empregada chegar, avivava o lar abrindo as cortinas e as
janelas, regava as plantas da sacada, ligava o rádio num volume manso e
preparava seu conhecido café durante um samba ou uma da MPB. Geralmente com sua
cara inchada e arrastando os passos, ele aparecia na cozinha e interrompia a
prosa cumprimentando a empregada e segunda mãe, talvez uma dessas “Maria’s”,
ficara junto com o apartamento, e com a boca a eucalipto beijava a esposa. Ele
num calção frouxo e quase sempre sem blusa se juntava a elas e tomava seu café
da manhã continuando a conversa, e ela sempre impecável nos seus vestidos
floridos. Quando o café era feito, sei lá, por “Maria”, o marido fintava a
esposa num olhar de desaprovação, mas nada sério, ela retribuía num sorriso tímido
de bochechas ruborizadas, e ele não terminava sua grande xícara habitual. Não
era incomum ele tomar o café na biblioteca, também seu escritório, quando
precisava analisar algum papel às pressas. Numa dessas manhãs de café e papeis
ele saiu deixando a porta entreaberta, a mulher passando pelo corredor pensou
em fechá-la, porém não pode deixar de reparar a xícara manchada e um pedaço de
bolo intocado num pratinho sobre a escrivaninha, pensou “não há mal nenhum, é
rápido”. Ao recolhê-los seu olhar escorregou despreocupado pelos papeis ali
postos, a maioria coisas de escritório, mas estatizou justamente num diário, do
qual nem sabia a existência, aberto numa data recente. Confessava uma outra
mulher, folheou-o e ratificou a suspeita, haviam bilhetes anexados e
propositalmente perfumados, com vocativos mais que carinhosos, encontros
marcados e um telefone que se repetia. Aquilo explicava seus recentes atrasos e
o gaguejo a justificá-los. Não ponderou muito, fez as malas e às lágrimas uma
carta posta precisamente nas tais páginas. Há um mês já correra o fato. Um caso
de traição comum, talvez, por algum canto do mundo.
De
quatro pés, na biblioteca, aos prantos, o assoalho sorve o uísque, o sangue e
as lágrimas. Não aparenta a saúde de outrora, com muito esforço se levanta,
tenta se recompor, arregaça as mangas, afrouxa ainda mais a gravata, num
movimento descendente pela camisa, enxuga um pouco o corte em sua mão esquerda,
ainda portando a aliança, natural, sem algum tipo de assombro. Esfrega os olhos vermelhos e marejados com o
antebraço direito, prende o soluço e se vê diante da janela, seu reflexo oscila
ou talvez seja apenas a embriaguez, não se reconhece, pensa consigo “Que desgraça
sou?”, tateia o peito, retira mais um cigarro da carteira posta no bolso da
camisa e acende-o com dificuldade, o isqueiro está banhado. Há dois dias que
começara a fumar. Cambaleando alcança a
cadeira, senta e endireita-se diante da mesa, zonzeando como à deriva.
Da
terceira gaveta da direita, contando de cima pra baixo, retira um cantil de
prata, herança de seu avô, era companheiro fiel no último mês, e também um
revólver, muito bem lustrado e alimentado. Revólver posto na mesa, um gole,
amarga o malte e a hemoglobina escorrida no metal, traga mais uma vez o
cigarro, se debruça e folheia o diário, nas primeiras páginas um mapa mundi, ao
qual por segundos admira o azul e seus fusos horários ajustados a partir de
Greenwich, mais algumas páginas: poemas não entregues a esposa e outro não
entregue a amante; compromissos desonrados e adiados; dias em branco. A carta de
despedida repousa adiante de seu lado direito, tantas vezes já lida, amassada e
manchada. Numa página imaculada não condizente com a atual data, deteve-se,
puxa sua Paker 51, sua joia mais estimada, e mesmo com a visão turva e náufrago
do próprio pensamento, põe-se a escrever pela última vez, as pálpebras pesadas,
cigarro a boca. Não mais resiste, tomba escorrendo pela escrivaninha até o
chão, com o diafragma, pra cima, ondulando ressacado. Uma tentativa de suicídio
fracassada comum, talvez, por algum canto do mundo.
O
cigarro aceso e derrubado sobre os papeis inicia o fogo, alastrando-se fácil
pela madeira. O relógio marca 7:00, a pontualidade britânica, insisto, de
“Maria”, entra pela porta destrancada do apartamento, observa a desordem e a
fumaça negra oriunda da biblioteca, assustada e a pés ligeiros invade o
recinto, e pescando com os olhos pelos cantos localiza-o no chão. Com uma descarga de adrenalina, feito
maremoto, arrasta o desmaiado até o corredor do prédio. Compulsivamente bate à
porta de um vizinho para que os bombeiros e uma ambulância sejam acionados. Um
incêndio acidental comum, talvez, por algum canto do mundo.
O
fogo, dançando feito bailarino, consume com fome desesperada: aquele diário com
seus segredos e fusos horários e tantos outros e cartas, ocultos por Bento,
Quincas e Bras, numa das estantes; abrasa o mogno, que ardendo, liberta almas
aprisionadas de um antigo cemitério indígena; põe a vapor o sangue, o uísque, as
lágrimas e a saliva ali derramados, por descuido ou desespero; desintegra as fotografias, permitindo o tempo petrificado
atingir a confluência do presente; Queima a Montanha de Mann, as Flores de
Baudelaire, o Retrato de Wilde, o Pássaro Azul de Buk, a “Estrada” de Kerouac,
o Crime de Queiroz e o Castigo de Dostoievsky, as baratas de Kafka e Lispector,
a Pedra de Drummond, os incontáveis verbetes dos Aurélio’s e o restante dali.
Cinzas
embebidas pela água, nada parece restar da antiga biblioteca, mas translucido
ora invisível algo se camufla na moribunda fumaça e na distorção quente do ar.
Um espectro ou entidade, nem deus nem homem, insone com todas as horas do
mundo, nacionalizado por todas as bandeiras, tendo em si um oceano de palavras,
espíritos e DNA, atordoado observa seu
útero e substância sem se fazer notar, no seu parto e batismo de fogo tem nas
últimas palavras incineradas seu nome: Verbo Mar.