O Sol no
horizonte já se deitara e a noite, o céu, cobria, era a Lua em tom de prata que
luzia. Depois de um dia ardo de trabalho descansar eu esperava, encaixei a
chave e dei uma, outra volta. Entrei. Mal fechei a porta e a mulher já gritava,
cuspiu tanta palavra, algumas eu nem conhecia, xingou mãe, pai e o resto da
família. Atirou o que alcançou: jarro,
prato, quatro. Não pensei duas vezes e eu mesmo me escorracei de casa, era
preferível a calçada do que morrer se defendendo do que não podia.
Eu já até imaginava, a mulher devia ter dado
ouvido aos murmurinhos dessa vizinhança a fora, que não me paga sequer uma conta,
mas não me dispensa de por em fofoca. E mulher quando com raiva vira onça “braba”,
mostra as garras e congela o coração. Eu que começo a mulher que tenho e ainda
não a que o povo inventou, vou esperar a calmaria, rezar Pai Nosso e Ave-Maria e
voltar com álibi, testemunha e apelação.
Nem banho
ainda tomado e estava eu pela rua na prematura noite, mas endereço não me faltava
e motivos também não. Sem bagagem, fiz uma curta viagem p’ro bar mais conhecido
da cidade. Se da vida nada se leva, desgraça não me para, é gole na cachaça e
tira-gosto em mãos. Prosa eu procurava e de fato encontrei, estava lá os amigos
de pescas, Bento Biquara e ‘nando Cará, não havia motivos p’ra festa, mas a
gente comemora até quando não se tem o que comemorar. Era “branquinha”,
linguiça e carne-seca. Foi futebol, política, religião e a vida alheia. Tem
bêbo que vira poeta, porém no caso éramos poetas e estávamos bêbados e como
há de ser, recitamos e improvisamos poesia, quando começaram a bater palmas,
p’ra não virar macumba fizemos embolada. Eu estava ali porque a mulher havia
brigado comigo, algum outro perdido porque não tinha mulher e um ou outro mais
desolado era por chifre mesmo.
Tarde da
noite, quase todos já tinham ido e só me restou ir embora também. Dormir na
praça seria um vergonhoso caminho e já não havia a quem recorrer, rumei p’ro
açude e lá vi minha canoa, seria ela minha cama pela noite toda. Remei em
direção da lua que refletia naquelas águas escuras de uma noite fresca de
inverno. Eu assobiava e cantava, mas um susto me silenciou, por baixo uma luz
rasgava as águas, pensei que era o Diabo me convidando p’ra um passeio no
inferno. E de um salto um enorme peixe dourado me apareceu, juro que não é
história, era maior que um boi e tinham escamas de ouro e nelas letras grafadas,
letras que montavam as mais belas palavras.
Peguei meu
arpão e pus meus olhos no bicho, que estranhamente no ar fazia música aos meus
ouvidos, mirei uma, duas e na terceira lancei. Certeiro que sou, pela cauda o
apanhei, ele num berro humano gritou “ai”, então minhas forças nas pernas se
foram do medo que senti. Com as mãos amarradas na corda num impulso aquele ser
me tirou do barco. Mas não o soltei, foi luta “braba”, bebi muita água e quando
os dois já estavam p’ra morrer ele me virou os olhos, verdes olhos, que me
lembravam olhos de criança.
– Simplício,
solte-me ou morreremos – Era o peixe.
– Como sabe
meu nome? – Assustado e com as mãos frouxas perguntei.
– Eu
moro nestas águas desde quando você era menino e não tem pescador por aqui que
eu não conheça por nome, ajude-me que eu lhe ajudo também.
– Cale-se, eu
briguei com a mulher e você vai ser meu presente de redenção.
– Mulher, meu
caro? Mulher se pesca pelos ouvidos, use minhas palavras e ela que será peixe
em suas mãos – Ele rio ainda mais humano.
– Onde um
peixe pode ser poeta melhor que eu? E eu não tenho verso que vá acalmá-la – Com
raiva e ofegante
– Simplício, sou tão velho quanto o mar e não
há ser que viva na água que não me respeite. Se não fosse eu Camões não teria
escrito Os Lusíadas; A lenda de Atlântida não teria se difundido; Jonas? Ele teria
morrido na barriga da baleia se eu não a convencesse a soltá-lo; Eu que dei o
título à obra de Hobbes, Leviatã inclusive é meu afilhado. Enfim... – Num tom
fervoroso.
– Mentira! – debochando.
– Se não
acredita, dei-me vossos ouvidos. Não custa nada.
Dei e então
ele me sussurrou certas palavras, mágicas, uma poesia tão boa que não havia
como contra-argumentar
Acordei às
margens do açude com os primeiros raios da manhã, com a canoa virada do meu
lado, abismado com as palavras dadas que me ecoavam na cabeça. Não poderia ser
sonho, eu tinha as marcas da noite que aconteceu. Molhado e acabado fui p’ra
casa falar com amor meu. Bati-lhe à porta e com uma não boa cara me veio,
arrastei-a p’ro quarto disse as tais palavras e o que se seguiu não vos cabe no
meio.
Simplício Anzol